quarta-feira, dezembro 28, 2011

O DIREITO À SINGULARIDADE

"Se a psicanalise é a experiência que permitiria ao sujeito explicitar seu desejo, na sua singularidade, essa experiência somente poderá se desenvolver se afastarmos qualquer intenção de terapia. A terapia, a terapia do psíquico, é a tentativa fundamentalmente vã de padronizar o desejo para que ele coloque o sujeito na esfera dos ideias comuns, do um como todo mundo. Ora, o desejo comporta essencialmente, no ser que fala e que é falado, no ser falante, um não como todo mundo, um à parte, um desvio fundamental e não secundário.
O discurso do mestre quer sempre a mesma coisa, o discurso do mestre que o como todo mundo. E se o psicanalista representa alguma coisa, essa coisa é o direito a um desvio que não se mede por nenhuma norma. Um desvio vivido como tal, porém, que afirma sua singularidade, incompatível com qualquer totalitarismo, com todo para todo x. A psicanalise promove o direito de um só com relação ao discurso do mestre que faz valer o direito de todos..O desejo do analista se coloca do lado do Um, com relação ao todos. O todos tem seus direitos, sem dúvida, e os agentes do discurso do mestre se vangloriam de falar em nome de todos. O psicanalista tem uma voz trêmula, uma voz bem pequena para fazer valer o direito da singularidade."

Jacques-Alain Miller
in: Perspectivas dos Escritos.........

sábado, dezembro 24, 2011


feliz natal ! ! !


um grande abraço,

muito beijos,

vamos continuar caminhando juntos.




domingo, dezembro 18, 2011

CONVITE

Editora UFSC encerra 2011com três grandes lançamentos


A Editora UFSC chega a dezembro com três grandes lançamentos encerrando o ano. Um deles é o aguardado livro Homo Academicus, de Pierre Bourdieu, um dos maiores intelectuais do século XX, que se notabilizou ao se debruçar sobre as estruturas do pensamento do próprio campo intelectual. O segundo livro é o ensaio "Linha direta: estética e política", de Mario Perniola, um dos filósofos italianos mais referenciados na atualidade, também traduzido pela primeira vez em língua portuguesa. Ao lado desses dois grandes pensadores de repercussão internacional, a Editora lança, no dia 20, o livro-embalagem “Poemas”, com dois volumes de poesias do multiartista catarinense Rodrigo de Haro.

Primando pela expressividade autoral e pela qualidade gráfica, as três edições consolidamo novo projeto editorial da EdUFSC, iniciado em 2010, e cumprem dois objetivos, segundo o editor Sérgio Medeiros. Um deles é o de ampliar seu catálogo, incluindo grandes nomes internacionais cujas obras sejam essenciais para a formação dos alunos desta universidade. O outro é o de pesquisar e experimentar novas texturas, cores, formatos de capa, de papel e de livros, a fim de oferecer aos leitores livros com altíssimo acabamento, comparável aos melhores publicados pelas grandes editoras universitárias do país.

Essa trajetória de inovação do livro culmina no dia 20 de dezembro, às 19h30min, na Fundação Cultural Badesc, na rua Vitor Konder, com uma festa de lançamento da nova obra poética de Rodrigo de Haro. A caixa-presente "Poemas" trazEspelho dos Melodramas e Folias do Ornitorrinco,dois livros inéditos do poeta e artista plástico catarinense que é, na avaliação de Medeiros, uma das maiores expressões contemporâneas da arte brasileira. Aos 72 anos, Rodrigo está em sua fase mais produtiva, alternando-se no talhe da palavra e da pintura.







quinta-feira, dezembro 15, 2011

Dossiê - Perversão

Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos;
definir a perversão é um paradoxo ético.


Christian Ingo Lenz Dunker


A perversão é uma das três grandes estruturas da psicopatologia psicanalítica. Ao lado da psicose e da neurose, ela representa um tipo específico de subjetividade, desejo e fantasia. Comparativamente, seu diagnóstico é mais difícil e controverso: consideram-se a extensão e variedade de seus sintomas, bem como sua alta suscetibilidade à dimensão política. Nas perversões podemos incluir aproximativamente três subgrupos: as perversões sexuais, as personalidades antissociais e os tipos impulsivos. Essa subdivisão é problemática e apenas descritiva, pois cruza categorias originadas em diferentes tradições clínicas.

Devemos distinguir uma perversão ordinária de uma perversão extraordinária, representada pelos “tipos concentrados” com os quais a perversão foi historicamente associada, para, em seguida, ser excluída, silenciada e expulsa da condição humana. Aquela que seria a forma mais forte de perversão, como confronto e desafio à lei, é, na verdade, expressão de um tipo coletivo de exagero da lei, baseado na atração pela forma, desligada e deslocada de seu conteúdo.


“Perversão”, assim, seria o nome para o que nos desperta indignação. Mas, porque o estado social “normal” não representa necessariamente o bem ético, torna-se difícil pensar a perversão de modo simples. A anomalia que nega a norma pode ser um desvio progressivo, útil ou benéfico. Além disso, mesmo a dissociação entre a norma e seu oposto, entre real e ideal, entre o bem e o mal, é justamente uma das características da perversão.


Tipologia da perversão


Isso posto, há três famílias principais da perversão. A primeira refere-se ao exagero ou à diminuição de algo, que, sob justa medida, seria tolerável e até mesmo desejável. O perverso, assim, estereotipa um comportamento, fixa-se em um modo de estar com o outro e de orientar sua satisfação. Tome-se o exemplo de um sujeito que, para encontrar satisfação sexual, deve empregar adereços como calcinhas, vestir-se com roupas do sexo oposto, admirar partes específicas do corpo do parceiro ou manipulá-las de modo bizarro. Tudo isso, sem “exagero”, seria parte admissível de um encontro sexual, mas, quando sua presença torna-se coercitiva, necessária e condicional, percebemos que há uma espécie de excesso. A parte toma conta do todo.


A segunda família de perversões decorre da ideia de desvio. Trata-se aqui da metáfora da vida como um caminho, no qual o perverso “toma um atalho” ou elege para si “outra via”. Ele se desgarra dos outros, torna-se alguém fora da ordem, fora do lugar adequado. Curiosamente, essa negação da “norma” funciona como reafirmação de sua força. Se a primeira perversão é definida pelo traço de exagero, a ideia central do segundo tipo é a de deslocamento, inversão e dissociação.


A terceira classe de perversão é formada pelos que marcam seu compromisso com a transgressão, com a violação da lei, da moral ou dos costumes. Essa transgressão não é efeito secundário, mas decorre da identificação do sujeito com a lei. Alude-se aqui à lei materna (em oposição à lei paterna) para designar essa relação de passividade radical e de disposição soberana sobre o corpo do outro. Apesar da extrema variedade histórica e antropológica, há duas maneiras básicas de perversão da lei: afirmá-la por meio de uma negação ou negá-la por meio de uma afirmação.


A matriz das perversões


A psicanálise chama de supereu essa lei interna ou essa voz que interdita certos tipos de satisfação, obrigando a outros. O supereu é a matriz ordinária de nossas perversões particulares e, ao mesmo tempo, a língua na qual expressamos e somos expressos pela lei social. Segundo essa tese, nossa consciência crítica, tida por muitos como a maior realização da razão humana, é ao mesmo tempo um olhar no qual nos aprisionamos, a voz do exagero e engrandecimento (das exigências, dos ideais e das expectativas normativas) e o núcleo de nossa satisfação e de nossa culpa em transgredir.


Por exemplo, vibrar em êxtase vendo um formigueiro pegar fogo não é um ato ilegal, mas sugere um tipo de gozo associado com a perversão. Qualquer criança explora esse tipo de satisfação, até que seus pais a convidem à seguinte “inversão de perspectiva”: “Imagine se você fosse uma formiga? Iria gostar de ver a casa pegar fogo?”. Esse tipo de inversão faz com que abandonemos uma gramática da satisfação – nesse caso o sadomasoquismo – em prol de outra. Cada um de nós possui uma história composta de gramáticas como estas: exibicionismo e voyeurismo, heterossexualidade e homossexualidade, feminilidade e masculinidade. Há gramáticas pulsionais mais simples, tais como ingerir e expelir, dar e receber, bater e apanhar, e há gramáticas mais complexas e mais abrangentes tais como ser e ter ou aceitar ou recusar.


Contudo, a tese psicanalítica é a de que a sexualidade infantil possui a característica de ser perversa, por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de satisfação, e de ser polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis. A perversão no adulto diferencia-se disso por seu caráter de fixidez (uniforme) e pela função subjetiva de desautorização da lei. Assim, a perversão não é só uma questão de infração procedimental da lei, mas refere-se ao tipo de intenção (ou de desejo), ao modo como nos colocamos, e situamos o outro, diante do que fazemos.


É nesse ponto que a definição popular de perversão argumentará que ela ocorre justamente por falta de sentimentos morais como a culpa, a vergonha e o nojo. Daí a ausência de arrependimento, de reparação e de consideração pelo outro que historicamente fez dos perversos os ícones da maldade. Eles não apenas praticam o mal, mas, principalmente, gostam de fazer mal aos outros, especialmente quando se comprazem em causar angústia, terror e tortura. Ora, o que acontece aqui não é a ausência de supereu, que poderia ser curada com a administração massiva da lei, mas a construção de uma espécie de supereu ampliado, como se algumas de suas funções fossem experienciadas, de modo deslocado, fora do sujeito, ou seja, no seu infeliz e circunstancial parceiro.


Perversão e experiência comum


Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita. Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro.


Há vários exemplos de como o gozo, ou seja, o tipo de satisfação ordenado pelo supereu constitui uma perversão particular e ao mesmo tempo um fator político incontornável. Há, por exemplo, um fascínio espontâneo por aquele que se coloca no lugar de supereu. A atração exercida por líderes e “celebridades”, assim como pelos sistemas totalitários, sejam eles nações, instituições, corporações ou mesmo empresas e grupos, baseia-se neste sentimento de que eles expressam em exterioridade nossa própria relação perversa com a lei. Diante disso, estaremos voluntariamente dispostos a servir como instrumento do gozo do outro, posto que ele é o meio pelo qual posso ter acesso deslocado à minha própria fantasia, exagerada pelo fato de ser vivida em massa. Isso tudo sem o ônus da culpa e do risco que estariam em jogo se eu me dispusesse a realizá-la por meios próprios.


A chave para entender esse tipo de perversão ordinária está na dissociação e na simplificação produzidas pela montagem da fantasia. Dissociação e simplificação encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar outro em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Em acordo com a regra perversa da inversão, o fetiche é a condição básica a que todo objeto deve atender para tonar-se viável no universo de consumo. Para funcionar como tal, ele deve conseguir dissociar seu potencial de ilusão, por um lado, de seu efeito de decepção, por outro. Não é um acaso que Karl Marx (1818-1883) tenha descrito a economia capitalista baseando-se no fetiche da mercadoria.


Outro exemplo de montagem perversa são os sistemas e dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. A burocracia é uma forma regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto, para confirmar a máxima perversa de que “o outro deseja, mas segundo a lei que eu determino”. Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da “vida corporativa”, o descompromisso “líquido” de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal), e tantos fenômenos que costumam ser reunidos sob a hipótese da perversão generalizada. Ao contrário da perversão clássica, a perversão ordinária de nossos tempos é uma perversão flexível, silenciosa e pragmática. Ela não se mostra como experiência “fora da lei”, que convidaria a ajustar as contas com os limites de nossa própria liberdade, mas, ao contrário, é mais perniciosa, pois reafirma nossa realidade assim como ela é.


As articulações que constituem a perversão, tais como a transgressão, a exageração e a dissociação, tornaram-se aspectos decisivos de nosso laço social ordinário. Bem-vindos à perversão nossa de cada dia.

IN: Revista CULT



domingo, dezembro 11, 2011

O cuidar de si


Novo livro de Christian Dunker estuda as formas de relação do sujeito com seu semelhante.
Por Vladimir Safatle


“A cura não apenas faculta amar e trabalhar, mas sugere que isso possa ser feito segundo uma nova forma de estar no mundo, uma forma que convida à criação e à invenção de outras maneiras de satisfação.”
Dificilmente poderíamos encontrar síntese melhor do que está em jogo na cura do sofrimento psíquico do que tal afirmação central no novo livro de Christian Dunker, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de Cura, Psicoterapia e Tratamento (Annablume).
Partindo dela, Dunker propõe-se a traçar o lento quadro de constituição da cura do mal-estar, tal como ele aparece à consciência ocidental desde os gregos.
Andando na contramão do empreendimento de Michel Foucault, para quem as práticas de cuidado de si próprias ao mundo greco-romano não seriam comensuráveis com aquilo que encontramos nas modernas psicoterapias, em especial na psicanálise, Dunker quer expor relações de profunda solidariedade e pertencimento.
Sua larga experiência clínica permite-lhe reinscrever a psicanálise no interior de um conjunto de reflexões sobre a força produtiva e transformadora do poder que exercemos sobre nós mesmos ou que deixamos que outros exerçam sobre nós. Poder que, atualmente, se serve da “importância da autoridade pessoal do psicoterapeuta sobre o paciente” a fim de mobilizá-la para além de meros dispositivos de sugestão.
Que a tematização das estruturas do poder possa abrir “uma nova forma de estar no mundo”, eis algo que a guinada organicista da psiquiatria contemporânea faz questão de esquecer.
É preferível imaginar que nosso corpo vai mal a assumir que sofremos por não sermos capazes de redesenhar as engrenagens do poder que exercemos sobre nós mesmos. Ou seja, que sofremos por termos, digamos, uma má política de si.
Mas é para a urgência de tal reflexão que o robusto livro de Dunker acaba por nos levar. O que não poderia ser diferente para alguém que afirma ser o diagnóstico clínico “um diagnóstico das formas de relação do sujeito com o outro”.
Seu livro começa com a confrontação entre as duas vertentes da formação do Ocidente, a grega e a judaica, a respeito da experiência da dúvida de si, da dúvida a respeito de seu próprio lugar. Uma dúvida que expressa o caráter agonístico, conflitual do que se coloca para mim como destino.
Quem diz conflito fala necessariamente em política, em capacidade de negociação. Essa dupla política se organiza tendo em vista dois tipos possíveis de fracasso.
O herói grego (e Ulisses é aqui o maior exemplo) é assombrado pela possibilidade da “perda da alma”, do “excesso de indeterminação do espírito” que o faria duvidar do destino que ele sabe necessário. Por isso, ele vive a esconjurar tal indeterminação e a reafirmar obstinadamente seu destino.
Já o herói semita é aquele que precisa “confiar e agir sem dispor de todo o saber necessário para tal”, que deve aceitar viver com um nome impronunciável. Por isso, ele deve assumir a produtividade desse seu excesso de indeterminação.
Duas vias cruzadas que Dunker, com sua astúcia costumeira, não tem dificuldade em transformar em tendências internas às formas do adoecer psíquico. Fracassamos de duas formas: ou por mergulharmos em uma odisseia sem fim nem retorno, como um Ulisses sem Penélope, ou por perdermos a confiança no que é impronunciável, no que ainda não tem forma.
Entre essas duas possibilidades de fracasso, as práticas de cuidado de si herdadas pela psicanálise atuarão.
A partir desta célula motora, o livro de Dunker passará em revista vários momentos das práticas de cuidado de si (Montaigne com seus Ensaios, Descartes e suas Meditações, Hegel e a narratividade de sua Fenomenologia), até chegar à psicanálise.
Nesse trajeto impressionante, a capacidade de distinção e organização de Dunker leva o leitor a compreender como a psicanálise nunca poderia organizar-se a partir de um “conhece-te a ti mesmo”, mas sim de um “cuida de ti”.
Não exatamente um saber baseado no processo de decifração do inconsciente, mas a invenção de uma verdade resultante da capacidade de criar novas formas de vida.

IN: REVISTA CULT


quinta-feira, novembro 17, 2011

CONVITES

Os pesquisadores do LABFLOR e a pós-graduação em Literatura
 da UFSC convidam para a palestra:



Ètica e justiça:

a partir de Luhmann e de Habermas,


com o Prof. Dr. Wilson Madeira Filho, (Titular de Direito da UFF),

debatedor: Profa. Dra Tereza Virginia (Literatura UFSC)
dia 06/12,
às 9:20,
sala 243, prédio A, CCE.

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CINEMA NA TRAVESSA


Estão abertas até 11 de novembro as inscrições para o Cinema na Travessa. A iniciativa, em sua primeira edição, pretende criar uma janela de exibição permanente dos curtas produzidos no Estado. O projeto fará exibições gratuitas de curtas catarinenses, que ficarão em cartaz de segunda a sexta-feira, na sede da Cinemateca, localizada na Travessa Ratclif, 56 – Centro, sempre na hora do almoço. Serão selecionados 10 curtas de até 20 minutos de duração, incluindo diversos formatos e gêneros. Os realizadores dos curtas selecionados receberão pagamento de direito autoral. As exibições ocorrerão entre 21 de novembro e 23 de dezembro de 2011.

O Cinema na Travessa é uma realização da Cinemateca Catarinense com apoio do Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis - Funcine. Para mais informações sobre como participar, acesse o site da Cinemateca Catarinense: www.cinematecacatarinense.org e confira o regulamento e ficha de inscrição.

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MOSTRA DE CINEMA ARGENTINO

A Mostra de Cinema Argentino acontecerá na UFSC entre os dias 21 e 25 de novembro como parte da programação da 4 Semana de Arte Ousada.

A abertura da mostra será no dia 21 às 17:30 no auditório da reitoria com Ezequiel Juarez, diretor do Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais argentino (INCAA).

A programação completa pode ser acessado no site:



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CÍRCULO DE LEITURA

Prezados colegas e amigos do Círculo de Leitura


No próximo dia 24, quinta-feira, o Círculo de Leitura de Florianópolis
volta a se reunir. Será o último encontro do ano
e dedicado a ele, Cruz e Sousa, o Cisne do Desterro,

o emparedado, o assinalado. Principalmente, o assinalado.


Nesse dia, 24 de novembro, ele faria 150 anos.

A Biblioteca Universitária da UFSC, juntamente com nosso

Círculo, fará homenagem com duas exposições: "Loucura da

imortal loucura", com poemas sobre Cruz e Sousa, e "Memória

de Cruz e Sousa", com documentos do acervo. A sessão

inicia um pouco mais cedo, às 17h, com coquetel de celebração

e olhar às exposições. Às 18h, começa o encontro do Círlculo

de Leitura, tendo como convidados especiais a Inês Mafra e

o vereador Márcio de Souza, que puxarão a conversa sobre

o negro poeta aqui nascido. Não deixe de aparecer com a sua

voz e a sua força. Por favor, ajude também a divulgar.


O encontro, prevendo-se uma participação maior, será no

auditório Elke Hering Bell, ao lado da Sala Harry Laus onde

habitualmente nos reunimos.


Abraços a todos!


Alcides Buss


Coordenador do Círculo de Leitura de Florianópolis

sábado, novembro 05, 2011

POR QUE MICHEL ONFRAY NÃO CONSEGUE CRITICAR FREUD ?


Alain Didier-Weill*

Tradução: Marco Antonio Coutinho Jorge**

A decisão tomada pela France Culture de propor a Michel Onfray uma tribuna cotidiana, durante este verão, para reforçar sua “crítica” de Freud, coloca diferentes questões. A primeira é lembrar que uma crítica pode proceder de uma démarche eminentemente criativa: quem contestaria que as críticas em relação a Freud que puderam ser formuladas, por exemplo, por Sartre, Foucault, Levinas, e até mesmo Lacan, trouxeram uma poderosa emulação junto a todos aqueles, especialistas ou não especialistas, que tinham razões de estar interessados na psicanálise?

Por que a crítica produzida por um pensador detém o poder de nos despertar? Porque a maneira pela qual nós a atestamos ou a contestamos faz, em todos os casos, ressoar em cada um de nós a relação conflituosa que ele mantém com a verdade.

É nesse ponto, em que devemos nos perguntar se o livro de Michel Onfray tem a dimensão de uma crítica, que respondemos categoricamente: não.

Esse livro não é, de fato, concebido para colocar a questão epistemológica da veracidade da invenção freudiana, mas sim para dizer que Freud seria um pecador com uma moral duvidosa: que busca ele nos dizer senão que Freud não cessou de frequentar o mal, pois teria dormido com mulheres de sua família, extorquido indevidamente quantias colossais de seus pacientes e pactuado com o diabo (o nazismo)?

Através dessa busca da denúncia de um pecador – e não da questão colocada pela enunciação de um pesquisador – temos a impressão de que Michel Onfray, que dispende tanta energia para denunciar a Igreja, se conduz como um padre dos tempos antigos: tão fascinado pelo pecado que é levado, sem temer o ridículo, a inventar fábulas tão loucas quanto aquelas que eram inventadas pelos inquisidores para autentificar sua condenação das bruxas.

Do mesmo modo que elas eram cúmplices do diabo, Freud, segundo o inquisidor moderno que é Michel Onfray, era cúmplice desse mal diabólico encarnado em sua época pelo nazismo. É nessa perspectiva que podemos dizer que o discurso de Michel Onfray, tal como o do inquisidor, não critica: ele nega.

O que o inquisidor nega ao dizer que a bruxa pactua com o diabo será muito diferente do que Onfray nega ao dizer que Freud pactua com o demônio sexual ou o demônio nazista? A esse respeito, eu diria que o ponto comum entre eles é a obediência a esse Mestre que é o supereu que, incapaz de pensar de outro modo senão através da perseguição, torna possível tais contra-verdades aberrantes, por exemplo, situar Freud como simpatizante do nazismo.

Em relação a essa acusação precisa, é necessário agradecer a France Culture por ter de alguma forma respondido a Onfray ao transmitir, em 10 de julho passado, o texto “Freud e Einstein – Por que a Guerra?”, interpretado por Michel Bouquet e Pierre Forest. Lembremos, com efeito, que a correspondência entre esses dois homens – a partir da qual escrevi o diálogo que foi transmitido pelo rádio – lhes foi encomendada em 1933 pela Sociedade das Nações, que, conhecendo perfeitamente sua posição radical em relação a Hitler, lhes solicitou intervir sobre a questão do perigo nazista.

Voltemos à diferença entre a crítica e a negação: quando Sartre critica o inconsciente freudiano, pois este lhe parece introduzir um limite infranqueável à liberdade, ele coloca os psicanalistas na posição de responder o que é, segundo eles, a liberdade. Quando Levinas critica o inconsciente freudiano, que lhe parece barrar o horizonte da transcendência, ele demanda do mesmo modo uma resposta à sua questão. Quando Lacan critica o Édipo de Freud, ele propõe ir mais além daquilo que Freud concebeu, pelo fato de sua própria história, de sua própria neurose.

A negação não tem nada a ver com a crítica, pois ela não é efeito da razão, mas do supereu: ela é o meio pelo qual o fato de acusar uma pessoa exonera de ter que acusar recebimento da mensagem que esta pessoa porta. Da mesma maneira que o inquisidor nega o que a feiticeira dá a entender do desejo humano, Michel Onfray, acusando Freud, é exonerado de acusar recepção do dizer de Freud sobre o inconsciente.

Nessa perspectiva, eu não diria, como alguns colegas, que se trata aí de um ódio em relação a Freud, mas sim de um ódio estrutural, que, apesar da aparência, visa um real que ultrapassa muitíssimo a pessoa de Freud. Esse ódio estrutural é aquele que anima o Mestre tal como Lacan propôs defini-lo: ele é aquele que, sustentando um discurso que é “o avesso da psicanálise”, está fadado, por isso mesmo, a consagrar sua vida e sua energia a foracluir, a negar, a odiar, a própria existência do inconsciente.

Devido à existência de tal ódio estrutural, não devemos nos surpreender ao tomar conhecimento de que, lendo o livro de Michel Onfray, as pessoas que têm uma experiência de análise, são levadas imediatamente a reconhecer – sem ter que conhecer profissionalmente a teoria ou a história da psicanálise – que este livro não fala nunca do que é a psicanálise em ato.

A abertura para a ética própria ao reconhecimento do inconsciente é necessária e suficiente para reconhecer um discurso negador.

 * Psicanalista francês, fundou a revista Insistance www.insistance.org ) e é autor de livros como Quartier Lacan (Cia. de Freud, 2007) e Os três tempos da lei (Jorge Zahar Ed., 1997).
** Psicanalista, psiquiatra diretor do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, professor-adjunto do Instituto de Psicologia da Uerj, membro correspondente do Mouvement du Coût Freudien (Paris), membro correspondente da Association Insistance (Paris/Bruxelles), autor de Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000). Sítio pessoal: www.macjorge.pro.br.

IN: Psicanálise & Barroco em revista v.8, n.2: 175-178, dez.2010 177

segunda-feira, outubro 31, 2011

Sobre o Existencialismo: fragmentos


"A existência precede a essência" ou os cinco conceitos- chaves do existencialismo sartriano: a má-fé, a reificação, o ser e o nada, a náusea.

Comecemos pelo começo; o que é o existencialismo? Simplesmente, segundo Sartre, a filosofia que assume como própria a convicção de que "a existência precede a essência". Essa formula pode parecer abrupta e pouco eloquente à primeira vista. No entanto, ela é muito simples e mais profunda do que parece. Significa em primeiro lugar o seguinte: em toda a filosofia clássica de inspiração platônica e, talvez mais ainda, na religião cristã, partiu-se da ideia de que para o ser humano "a essência precedia a existência". Claramente falando: primeiro Deus concebe o homem e a mulher e depois vem, num segundo tempo, a criação que os faz existir. Haveria em certo sentido um "Deus artesão" que, como um operário que tem de fabricar um objeto, faria primeiro um projeto e depois o realizaria. Em outras palavras ainda, nessa perspectiva, Deus primeiro faz funcionar seu entendimento e somente depois, num segundo momento, sua vontade.
Para tornar suas ideias totalmente claras, Sartre, num pequeno texto que aconselho todos os meus alunos a ler, O existencialismo é um humanismo, toma o exemplo de um operário que tivesse de fabricar um corta-papel. Eis como formula as coisas:
Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel: tal objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; ele se reportou ao conceito do corta-papel e igualmente a uma técnica prévia de produção que faz parte do conceito, e que e no fundo uma receita. Assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para o corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receitas e de características que possibilitam produzi-lo e de defini-lo - precede a existência... Quando concebemos um Deus criador, identificamos esse Deus quase sempre com um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se de uma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelos menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial... O existencialismo ateu, que eu represento... declara que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem...
Vemos, portanto, que Sartre, sem se dar conta (acreditando inclusive ser totalmente original), coincide quase palavra por palavra com a noção de liberdade humana elaborada por Rousseau e Kant. Para ele assim como para eles, o homem é livre no sentido que escapa a todas as categorias "essenciais", a todas as definições, mas também a todos os "programas" nos quais gostariam de encerrá-lo.
Eis por que, aos olhos de Sartre, o principal adversário do existencialismo é a religião, e particularmente a teologia cristã. De fato, segundo a visão teológica do mundo, a essência (o plano) vem antes da existência (sua realização), de tal sorte que se deve supor uma finalidade prévia do ser criado da qual se poderia deduzir uma reflexão sobre sua destinação - no que concerne ao homem, uma moral. Assim como o corta-papel é "feito para" abrir livros ou o relógio para dar as horas, deve-se imaginar que também o ser humano, na perspectiva de ser "fabricado" por Deus, deva responder a um objetivo e cumprir uma certa missão (por exemplo, servir a ele, obedecer a seus mandamentos etc.)
É esse esquema clássico, com todas as suas implicações éticas, que o existencialismo sartriano propõe inverter: se o ser humano não é estritamente falando uma criatura, nenhum "plano", nenhuma “essência” precede sua existência. Por conseguinte, nenhuma finalidade particular esta vinculada a seu ser - como ocorre, em contrapartida, no caso de todos os objetos fabricados. O ser humano é nesse sentido o único ser plenamente livre, o único que escapa a priori a toda definição prévia. Compete a ele, não seguir mandamentos divinos que estariam vinculados a sua condição de criatura, mas, ao contrário, “inventar” o Bem e o Mal.
Dessa simples abordagem do existencialismo já se deduz uma tese crucial: para Sartre, assim como para Rousseau e Kant, não existe “natureza humana” intangível, não existe destinação do homem inscrita a priori na sua essência.
Deve-se prestar bastante atenção ao ler Sartre: por não ser um bom historiador da filosofia, ele ignora seus predecessores e não para de afirmar, equivocadamente, que o existencialismo marca uma ruptura total com as filosofias do século XVIII. Há nisso um engano, o que não tem importância no que diz respeito ao fundo, mas é às vezes constrangedor no plano histórico. Na verdade, como Rousseau e Kant, Sartre acha que o homem é o ser que por assim dizer faz “explodir” todas as categorias, todas as definições nas quais querem aprisioná-lo – no que, mais uma vez, reside sua liberdade. Por isso também, assim como eles, acaba desmontando os pressupostos do racismo e do sexismo. De fato, em que mais eles consistem senão na ideia de que existe uma essência da mulher, do árabe, do negro, do amarelo ou do judeu que precederia a existência deles e da qual poderiam ser deduzidas características necessárias e comuns à “espécies”? Logo, faria parte da “natureza” “da” mulher (como se houvesse apenas uma!) ter filhos, não participar da vida pública e ficar fechada na vida doméstica, ser doce e sensível, intuitiva mais que intelectual etc, assim como, segundo os clichês habituais do racismo, faria parte da natureza “do” negro ter o ritmo no sangue e ser infantil (“o africano é brincalhão”), “do” árabe ser hábil, “do” judeu ser inteligente, gostar de dinheiro e outras baboseiras desse tipo.
Se não existe nenhuma “natureza” do ser humano em geral, tampouco existe natureza de determinado sexo ou “raça”. Foi sobre essa convicção que o existencialismo teve por vocação fundar um feminismo e um anti-racismo de tipo universalista: o que dá dignidade ao ser humano em geral é o fato de ser, diferentemente dos objetos ou dos animais, um ser fundamentalmente livre, transcendendo todas as etiquetas que pretendam colar nele. O que constitui seu valor não é sua pertença a uma determinada comunidade sexual, étnica, nacional, linguística ou cultural, mas, ao contrário, o fato de ser capaz de se elevar acima de todos esses enraizamentos possíveis para participar da humanidade em geral.
Pelas mesmas razões, nem a história nem a natureza poderiam ser tidas por “códigos” determinantes. É verdade que o humano existe em situação: tem um sexo, uma nação, uma família etc. Em suma, tem uma natureza e uma história. Ocorre que, justamente ao contrário do que diz o materialismo, ele não é essa natureza e essa história e nem poderia ser reduzido a elas. Ele as tem e pode pô-las em perspectiva, ou até, em certa medida, abstrair-se delas para lançar-lhes um olhar crítico. Não é por ser mulher que se é menos Homem...
Luc Ferry, in: Vencer os Medos
Tradução de Claudia Berliner
Editora: WMF Martins Fontes
Parte III – Para levar para a ilha deserta...
                                       

terça-feira, setembro 27, 2011

ENTREVISTA



O professor de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro, fala da postura do brasileiro diante da ética e também do perigoso preconceito que existe em relação à política no país

Certo e errado. Conceitos antagônicos que se colocam como dois pontos ligados por uma reta: o homem. Em entrevista exclusiva à Revista E, o professor da USP, fala, que participou do Seminário Internacional Ética e Cultura, realizado em outubro no Sesc Vila Mariana, analisa que, sobretudo no mundo de hoje, essas noções não devem iludir como se fossem coisas claras. Há muitos outros pontos ao longo dessa reta.


Há uma interpretação errada da obra de Maquiavel? Qual o conceito de ética presente nos textos do florentino?
Durante muito tempo, Maquiavel foi considerado um autor maldito. O século 20 conheceu uma recuperação da sua obra por alguns motivos. Um deles é o recrudescimento do nosso interesse pela política. A leitura dos textos de Maquiavel nos leva a perceber que ele não defendia a tese de que os fins justificam os meios e de que o mal deve ser praticado para conseguir um fim egoísta. Ele se mostra preocupado com o fato de que na política não existem regras fixas; governar, isto é, tomar a iniciativa política, é um trabalho extremamente criativo e, por isso mesmo, sem parâmetros anteriores. Assim, essa preocupação do filósofo, por curioso que pareça, torna-se um bom instrumento para repensar a ética. Para falar de ética, também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das duas éticas. Weber, depois da Primeira Guerra Mundial, distingue a ética de princípios, em que se aplicam valores já estabelecidos, da ética da responsabilidade, que é a ética do estadista. Esta modalidade aponta para a necessidade de pensar nos resultados possíveis de uma determinada ação. De modo geral, a ética da responsabilidade é uma retomada de Maquiavel; ela representa a interferência da po-lítica na ética. Agora, o fato interessante é que nós, quando agimos, lançamos mão de um misto das duas éticas. De alguma forma, há alguns valores e princípios dos quais não abrimos mão. Por outro lado, ninguém deixa de levar em conta as conseqüências de seus atos. Isso nada mais é do que a aplicação da ética da responsabilidade. Então, o ponto interessante de Maquiavel e da questão ética está na maneira como nós a enxergamos sob a luz da política. E hoje, com o fim das garantias tradicionais para a ação do indivíduo privado, estamos todos mais ou menos na posição do príncipe de Maquiavel - isto é, num mundo de incertezas, dentro do qual temos de inventar a melhor posição.

O que devemos entender por ética?
A ética diz respeito à conduta humana dividida entre o Bem e o Mal. Mas é muito complicado aplicar esse discurso em uma época em que os valores não são mais absolutos. Não posso dizer que o homossexualismo é errado. Não posso nem dizer que, em princípio, o adultério é errado. Todas essas condutas foram relativizadas. É por isso que se torna essencial mostrar às pessoas como é importante que elas enunciem seus próprios valores, e não apenas sigam valores impostos por outrem. É preciso que as pessoas descubram seus próprios valores e sejam coerentes com eles. Elas devem pensar, também, quais seriam os resultados, para elas e para a sociedade, de uma escolha. O meu problema tem sido contestar uma ética do certo ou do errado. Uma ética assim acaba isentando a pessoa da dor e da dificuldade de escolher. Isso é muito comum. De modo geral, grande parte das pessoas que discutem ética no Brasil exalta a reclamação, a indignação, a crítica, mas não no sentido de definir uma alternativa viável por meio de um pacto da sociedade e da política. Temos que ir além dessa indignação fácil. É preciso estabelecer quais são os valores éticos que as pessoas estão prontas a assumir. O que não podemos fazer em termos éticos é dispensar as pessoas de suas próprias escolhas.
Como a referência à ética de princípio e à ética de responsabilidade se aplica ao Brasil?
No Brasil, há uma tendência muito forte de pensar que o político não é um indivíduo ético. Isso significa dizer que ele é alguém que até pode seguir alguns preceitos morais, mas que quando precisa escolher entre esses valores e o bolso, entre esses valores e o poder, geralmente opta pelo próprio interesse. O que quero dizer é que o preconceito contra a política que vigora no Brasil é extremamente danoso, porque construímos uma imagem de nós que ao mesmo tempo em que se mostra muito moralizada, encontra muita dificuldade de lidar com a vida real; construímos uma espécie de esquizofrenia do brasileiro. De um lado, o discurso que proferimos se apresenta como um discurso altamente ético e moralizante, mas, de outro lado, a prática - de todos nós, não só dos políticos - é um Deus nos acuda. Esse quadro é particularmente agudo na política. Achamos que a política deveria ser pautada pela ética, por isso insistimos em nos atermos a grandes princípios, mas no momento de executá-los, falhamos.

O que significa, então, agir politicamente?
Significa você ser responsável pelas suas decisões. Antes de entregar um pacote pronto, definindo o que é certo e o que é errado, seria necessário perguntar qual é a maneira correta de agir. Um Código de Ética é uma expressão contraditória, pois ética e lei são coisas diferentes, e até mesmo opostas. Se existe um código com regras de conduta pré-definidas, segui-lo ou não independe da pessoa aceitá-lo como certo e justo. O que importa para a sociedade é que ela cumpra a lei, não as razões que a levam a isso. Esse é o caso do trânsito: serei ético se parar no vermelho e se ceder a vez por convicção, e não por medo da lei. Mas, para as demais pessoas, não é importante se faço isso por razões éticas ou por medo da multa. Assim, se temos um pacote pronto (um Código de Ética), as pessoas tendem a não refletir sobre as suas próprias ações. Quem pode ser ético é o sujeito que pratica o ato, e não o ato em si.
Se o governante se pauta pelos resultados e escolhe sozinho os caminhos a serem seguidos, quais são os parâmetros que limitam sua ação?
O governante tem mais responsabilidade pelos resultados dos seus atos do que os outros cidadãos. Quando queremos condenar um político, cominamos sua culpa não pelos eventuais fracassos das suas escolhas políticas, mas pela sua corrupção. Esse julgamento é equivocado. O governante, de qualquer forma, será julgado pelos resultados dos seus atos. Se o presidente da República melhorar o nível de vida dos brasileiros e reduzir a diferença social, terá cumprido sua missão com sucesso. Agora, sobre a maneira como ele atingirá esse objetivo, paira uma fronteira nebulosa. É difícil dizer que a ação política deve seguir os Dez Mandamentos. Claro, é desejável que siga. Mas não é uma atitude que deve ser perseguida a todo o custo. Há tratados e regras eventualmente desobedecidos porque o governante lida com situações sem ter qualquer proteção. Eu, como cidadão, quando tomo decisões, posso ter uma proteção. Em uma sociedade organizada (que não é o caso do Brasil), sei que se eu trabalhar, for honesto e respeitar as leis, terei segurança, saúde, respeito e educação. E sei também que se não seguir esses princípios não alcançarei essas benesses. No entanto, essa é uma condição para os cidadãos e não para o governante. O governante vive uma situação de risco, de alto risco. A imposição da ética privada ao governante é complicada. Mas essa é a teoria, digamos, clássica, a leitura convencional de Maquiavel. Eu vou além e acredito que essa ética aplicada ao governante, ou seja, que implica riscos, também vale para nós, cidadãos comuns. Ainda mais em um país como o Brasil, onde mesmo que eu siga a ética dos Dez Mandamentos, não terei a certeza de que tudo correrá bem. É nesse sentido que a ética de responsabilidade, que a princípio seria prerrogativa do estadista, transfere-se para os cidadãos. Essa é uma das grandes mudanças do final do século 20. No fim das contas, reduz-se a distinção entre as duas éticas - pública e privada.
Seria necessário, então, construir um novo arcabouço de valores e princípios?
A principal referência é a responsabilização das pessoas, cuja base prescritiva tem de ser assumida pela própria pessoa. Tudo isso passa por um processo educativo. É claro que deve ser ensinado para as crianças que elas não podem fazer determinadas coisas. Tal ação tem de vir escudada no princípio da reciprocidade, que diz que eu não posso fazer algo a outras pessoas que não quero que façam comigo. Não defendo a total ausência de normas. Mas há uma dose enorme de prescrições inúteis. Vivemos num sistema pendular, entre o excesso de proibições e o excesso de permissividade, que é justamente fruto da nossa dificuldade de perceber que a ética, em última análise, significa responsabilidade pessoal. Como nós não assumimos isso e nos pautamos em regras prontas, não conseguimos entender que, mesmo que eu apreenda uma regra que venha de fora, ela só terá validade quando eu assumir sua autoria, por meio de um processo de questionamento. Em contato com uma prescrição emprestada, a primeira coisa que devo fazer é perguntar por que apreendê-la. Muito da moral sexual tem a ver com isso. Existe um mal-estar em relação ao sexo ainda muito presente na sociedade brasileira. Esse estado é proveniente desse grande sentimento de culpa. Eu pergunto: que mal faz para a sociedade uma conduta sexual considerada pouco ortodoxa? Qual o problema? O outro lado da mesma moeda é que acabamos sendo muito complacentes com deslizes morais de outra natureza, como a corrupção e a infração à lei.
Qual é o limite da ética do governante?
A ética do governante é, hoje, a ética de quase todos nós. A situação em que se encontra o governante, uma situação que não lhe garante o resultado das ações, é a situação de todos nós. Como não há mais garantias sobre o resultado, devemos escolher os governantes considerando os resultados, mais do que considerávamos no passado. A intenção não é uma garantia do caráter ético de uma ação. Até porque, desde as teorias de Freud, sabemos que a intenção consciente significa uma coisa, enquanto o desejo inconsciente significa outra bem diferente. Muitas vezes, o discurso mais moralista esconde uma agressividade extraordinária. Assim, devemos pensar numa ética em que a questão da intenção perca a importância. Mas há outro ponto: a exigência ética sobre o governante, ao contrário do que se imagina, não é pequena. O governante pode agir corretamente e ser condenado se ele não atingir resultados convincentes e se não cuidar da sua imagem. O governante tem prescrições a seguir. O problema é que temos uma imagem falsa disso. Uma imagem que resulta do tempo em que se censurava a imprensa, em que o governante não prestava contas para a sociedade. Hoje, existe uma série de preceitos que ele deve obedecer.

Tendo em vista o princípio da responsabilidade, quais são as diferenças entre a ética desenvolvida no período da ditadura e a de hoje, quando vivemos, em tese, a democracia?
Durante a ditadura não havia reciprocidade: havia o lado que podia tudo e o lado que não podia nada. Havia, em suma, uma desigualdade brutal. Não havia transparência: as questões eram decididas sem que a opinião pública soubesse o que se passava. Em um regime democrático, mesmo com todas as limitações que o nosso apresenta, existe a responsabilidade do mandatário que passa pela transparência, pelo crivo da opinião pública, pela prestação de contas e pela reciprocidade.
Como o senhor define política e quais seriam os instrumentos de crítica a um governante?
Política, para mim, não está ligada à polis, à cidade, à organização das instituições, como estava na tradição da teoria política, mas está ligada ao poder, no sentido de ser a maneira como cada um de nós pega os fios descosturados da sua vida e tenta ser senhor deles. Então, na hora em que eu me torno adulto, isto é, no momento em que decido ser senhor do meu destino, enfrentando todas as adversidades, é que eu faço política. Por isso eu digo: política é poder. Política é deixar de ser um joguete passivo daquilo que me formou e me tornar mais ou menos um cidadão ativo da minha vida, um condottiere do meu destino. Serei o estadista do meu futuro. Dessa forma, todos nós fazemos política, mas isso é uma coisa difícil de ser feita, e grande parte das pessoas mostra-se incapaz de conduzir. Para me tornar senhor desses fios - para tornar os meus valores coerentes - preciso, porém, abrir mão de muitas coisas. A crítica à ação política tem a ver com a definição do futuro. É preciso analisar qual futuro o governante está urdindo para a sociedade. Qual é o seu projeto? Há êxito? E depois, como se confrontam esse projeto e o meu projeto pessoal. Mas é claro que se deve partir do pressuposto de que tais projetos sejam claros e legítimos, o que não ocorre no Brasil. Aqui, muitas vezes, esses projetos, sobretudo os da direita, são desonestos. Além do mais, faz muito mal à política brasileira que durante a campanha eleitoral nós nos deparemos com atitudes maniqueístas: ora a direita representa o mal e eu voto na esquerda, ora acontece o contrário.

FONTE:renatojenani.pro.br/



sábado, setembro 10, 2011

CONVITE


Acontece nessa quinta-feira, 15 de setembro, às 19 horas, no Restaurante Toda Hora, o lançamento do livro "corpoalíngua: performance e esquizoanálise", de Clarissa Alcantara.



Teatro, filosofia, literatura, psicanálise tornaram-se campos intercessores e emergentes a uma prática artística inaugurada em 1988 que se executa, hoje, como uma vivência performática no campo da arte da performance – objeto de pesquisa de mestrado, doutorado e pós-doutorado com o título corpoemaprocesso/ teatrodesessência. A natureza processual dessa experiência de pesquisa produz esse continuum com limites móveis e sempre deslocados. O presente projeto dirige-se ao estudo aprofundado do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, cercando, principalmente, a idéia de corpo sem órgãos, termo apropriado de Antonin Artaud, e de esquizoanálise – análise simultânea das máquinas desejantes e dos seus investimentos sociais – inserida como parte operacional do fazer artístico. Estas noções transitam na práxis-teórica da experiência performática do teatro desessência: experiência do puro vivido que inscreve o corpo numa lógica das multiplicidades, fusão de relações em constante variação no exercício do viver em intensidade. “CORPOALÍNGUA: performance e esquizoanálise” é um experimento performático do aqui-agora, de onde o corpo nasce do esquecimento. No espaço, um corpoescritura inscreve uma fala subterrânea e rizomática, impelindo a linguagem ao seu ponto de suspensão, ao desconhecido – o fora da linguagem. No enlace e desenlace da língua e do desejo, balbucia alíngua no imanente ato criador, pensamento da carne em pleno acontecimento artístico coletivo.



Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (1997), Mestrado e Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1999-2005), orientação de Alckmar Luis dos Santos; Stage Doctorat - Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot (2004), com Christophe Bident, Pós-doutorado pela UFSC (NUPILL), Teoria do Texto Digital (2006) com auxilio do CNPq e Capes; Pós-Doutorado em Psicologia Clínica/PUC-SP, especialidade Teatro, Núcleo de Estudos da Subjetividade, supervisão de Peter Pál Pelbart, com auxílio da FAPESP; Pós- Graduação Lato Sensu Análise Institucional, Esquizoanálise, Esquizodrama: Clínica de Indivíduos. Grupos, Organizações e Redes Sociais, pela Fundação Gregorio Baremblitt, Belo Horizonte / MG. Atua na área de Filosofia, Teatro, Literatura e Esquizoanálise, com ênfase em Arte da Performance e Vídeo-performance com a pesquisa: Teatro Desessência / Corpoemaprocesso. Coordenadora do Núcleo Permanente de Pesquisa e Performance (N3Ps), em Casa Branca, Brumadinho/MG, onde reside.



Clarissa Alcantara estará em Florianópolis especialmente para o lançamento do livro.

Maiores informações: 31-91180863 - alcantara.clarissa@gmail.com



Restaurante TODA HORA
Rua: Dib Mussi, 443
Centro - Florianópolis-SC
Fone: 3024 0010

quarta-feira, agosto 31, 2011

Artigo

DRÁCULA VIAJANTE: QUESTÕES DE GEOGRAFIA E FRONTEIRAS



Sérgio Luiz Prado Bellei



Resumo
A ênfase dominante da crítica psicanalítica no problema da sexualidade no Dracula, de Bram Stoker, tende a ocultar a relevância de outros aspectos do romance, como é o caso das questões relativas a viagens e fronteiras. Este ensaio tenta chamar a atenção para as referências constantes, no romance, aos problemas relativos ao cruzamento de fronteiras entre culturas civilizadas e primitivas. Dracula pode também ser entendido como um romance que trata dos sentimentos xenófobos motivados pela possibilidade de um encontro cultural no qual comunidades metropolitanas se sentem ameaçadas por forças alienígenas poderosas e se vêem forçadas a recorrer ao exercício violento do poder com o objetivo de manter o bárbaro do lado de fora dos muros.



Abstract

The overwhelming emphasis of psychoanalytic critics on the question of sexuality in Bram Stoker's Dracula tends to occlude the significance of other aspects of the novel, such as the question of travelling and frontiers. This essay is an attempt to call attention to the constant references made in the novel to the problems involved in crossing frontiers from a civilized to a primitive culture. Dracula can also be read as a novel dealing with xenophobic feelings motivated by the possibility of a cultural encounter in which metropolitan communities feel threatened by powerful alien forces and must therefore appeal to a violent exercise of power with the purpose of keeping the barbarian outside the gates.

I. DRÁCULA E A PSICANÁLISE



A marcante presença da temática da sexualidade monstruosa no Dracula, de Bram Stoker, relega normalmente a um segundo ou terceiro planos outros problemas propostos pelo romance que podem, particularmente em tempos xenófobos de diásporas e migrações, ser tão ou mais significativos do que a questão sexual. É este o caso do tratamento do tema das viagens em que tanto o conde quanto suas vítimas e seus algozes cruzam fronteiras entre uma Europa civilizada e uma outra, representada pela Transilvânia e percebida como primitiva, subdesenvolvida e ameaçadora. Talvez seja mesmo possível dizer que a sexualidade monstruosa do vampiro, apesar de sua excessiva visibilidade no romance, seja na realidade um tema secundário a ser compreendido precisamente no contexto mais amplo da questão das viagens e da geografia em que elas ocorrem. Vale dizer, a sexualidade monstruosa de Drácula só se torna um problema quando ousa instalar-se na metrópole londrina. Permanecesse ela na Transilvânia e, provavelmente, sequer seria notada a não ser como um excesso exótico e distante.

Drácula representa uma poderosa identidade monstruosa a ser negada a todo custo porque constitui uma ameaça ao mundo civilizado (representado pela metrópole londrina) onde o vampiro tenta se instalar. Seu objetivo é sugar o sangue de jovens mulheres inglesas, o que resulta na disseminação do terror em um mundo masculino aparentemente pouco seguro em seu relacionamento com o feminino. E representa ainda uma ameaça dirigida em grande parte contra os valores da domesticidade já que, a julgar pelo que acontece com Lucy, as mulheres atacadas pelo vampiro tem a sua sexualidade exarcebada e, esquecidas de sua função maternal de amamentar e proteger, começam a atacar e a sugar o sangue de crianças inocentes. Vale dizer, Drácula constitui uma ameaça à família em sua dimensão social e sexual... Qualquer mulher jovem pode tornar-se sua vítima. A totalidade da instituição doméstica na sociedade é assim colocada em questão pela ameaça da proliferação de uma sexualidade monstruosa que, curiosamente, apresenta-se como surgida em um contexto histórico aristocrático, ainda que se trate de uma aristocracia problemática porque fora de lugar: o vampiro é um nobre que pertence à família de um sanguinário tirano da Transilvânia no período de 1456 a 1462, Vlad Tepes, conhecido particularmente pelo seu método favorito de torturar inimigos transpassando-os ainda vivos com estacas que eram posteriormente fixadas ao solo (Kirtley 1988, 13-14). É esse o Drácula (que significa "demônio" em rumeno) que Bram Stoker reativa no final do século XIX para apresentá-lo como parte de uma história de barbárie a ser diligentemente excluída da história da civilização.

A questão da sexualidade no romance (o interesse do idoso Drácula em mulheres jovens que restauram seu vigor e juventude) tem seu contexto histórico imediato na Era Vitoriana inglesa mas continua a despertar interesse até nossos dias. Novas edições do clássico de Bram Stoker esgotam-se recentemente e versões fílmicas do romance continuam a aparecer. É justamente esse contexto histórico de fin-de-siécle vitoriano, bem como o interesse permanente despertado pelo tema, que se apresentam de imediato como fontes motivadoras de leituras psicanalíticas e históricas do romance. Leituras psicanalíticas afirmam, com unanimidade quase total, que o vampirismo constitui a expressão mais ou menos velada de uma vigorosa energia sexual e lembram freqüentemente a relevância, para a compreensão da figura paterna no conde Drácula, do tratamento do incesto como origem da civilização explorado por Freud em Totem e Taboo. Para Freud, a instituição do horror cultural ao incesto constitui o ato primordial motivador da civilização e de seus descontentes. O incesto aparece na horde primitiva, em que a atividade sexual era livre, inclusive entre pais e filhas, com a finalidade de estabelecer uma regra sobre quais homens tem direito a quais mulheres e quais mulheres são proibidas... Após o parricídio primordial, a instituição do incesto impediria que apenas o macho mais poderoso da tribo, provavelmente o patriarca e pai de varios filhos e filhas, reservasse para si todas as mulheres, tornando difícil ou impossível aos mais jovens copular. Torna-se assim necessário, em primeiro lugar, a destruição do patriarca e a sua subsequente devoração, o que permitiria aos mais jovens adquirir "uma parte de sua força" em um ato que se ritualizaria, com o passar do tempo e sem o sacrifício real do pai, no "banquete totêmico". Para Freud, o banquete é possivelmente a celebração primordial da humanidade, [constituindo] a repetição e a comemoração daquele feito criminal memorável que está na origem de tantas coisas - da organização social, das restrições morais, e da religião (Freud 1953, 141-142). Em segundo lugar, torna-se ainda imperativo, após o parricídio, tomar providências para que ninguém venha a assumir o lugar do pai possuidor de todas as mulheres, evitando-se assim a repetição da estrutura patriarcal de exclusão. Aparece então o contrato social e familiar que estabelece quais mulheres são proibidas e quais permitidas. Note-se que, como lembra James Twitchell,

Freud não acreditava, e nem precisava acreditar, que a cena da horde primordial realmente tivesse acontecido, já que o que importa realmente é que nós continuamos a agir como se a cena tivesse ocorrido.... Agimos na crença de que certas mulheres são realmente proibidas; como se fosse nosso ainda o destino de Édipo no caso do taboo ser desrespeitado (Twitchell 1985 101).

As semelhanças do Dracula de Bram Stoker com a história primordial de horror freudiana são evidentes: Dracula é o patriarca da horda primordial que quer todas as mulheres para si e tenta submeter à sua vontade os homens menos poderosos no grupo social. Vossas jovens mulheres, aquelas que amais, diz Dracula após ter atacado Lucy e Mina, já são minhas; e através delas também vós, e outros mais, serão também meus -- minhas criaturas, para obedecer meu comando e operar como meus lacaios quando eu tiver o desejo de me alimentar (Stoker 1975 271). E Quincey Morris, Dr. Seward, Jonathan Harker e Arthur Godalming são os filhos parricidas ajudados por um "bom" pai (ou seja, o que respeita a lei da proibição de relações incestuosas) que vem do continente precisamente para orientá-los na caça ao "mau" pai fora de controle.

Não é difícil perceber, em uma leitura histórica, a pertinência e a força que adquire a repetição de tal mito primordial de um patriarca sexualmente poderoso e ameaçador para homens emasculados no contexto sócio-cultural da Era Vitoriana. Um dos aspectos marcantes do período é a incerteza que resulta em grande parte do dilaceramento radical entre tendências opostas como religião e ciência, sexualidade e repressão, civilização e barbárie, mulher angelical assexuada e a "nova mulher liberada" ("the new woman"), e que afeta com particular intensidade a classe dominante masculina. Não é por acaso que um outro clássico de terror, Dr. Jeckyll e Mr. Hyde (O Médico e O Monstro), texto que trata precisamente do problema de um ser dividido entre sua condição social de respeitabilidade e forças instintivas fora de controle, torna-se logo após sua publicação um sucesso literário e popular. Ao dramatizar tal dilaceramento, como bem observou o romancista John Fowles, o livro de R. L. Stevenson pode bem ser visto como "o guia por excelência da Era Vitoriana":

O fato de o homem vitoriano ter a mente dividida... é algo que constitui parte essencial da bagagem de qualquer viajante que pretenda explorar o século XIX. Trata-se de uma esquizofrenia que pode ser percebida de forma mais clara e visível nos poetas... Tennyson, Clough, Arnold, Hardy; mas também na extraordinária flutuação política entre Direita e Esquerda presente em homems como o jovem Mill e Gladstone; nas mesmas e constantes neuroses e desordens psicosomáticas de intelectuais em outros aspectos tão diversos como Charles Kingsley and Darwin...; no interminável cabo-de-guerra entre liberdade e e repressão, excesso e moderação, costumes e convicções pessoais, entre os anseios que tinham os homens de princípio pela educação universal e o medo do voto democrático; visível ainda na tendência obsessiva para revisar e editar a ponto de tornar-se necessário, para o conhecimento do verdadeiro Mill ou do verdadeiro Hardy, procurar informações antes nas mudanças e exclusões textuais de suas autobiografias do que nas versões oficiais publicadas.... Nunca foram tão confusas as experiências relatadas, nunca a fachada pública apresentada como verdade com tanto sucesso para uma posteridade crédula. E é isto, creio eu, que torna Dr. Jeckyll and Mr. hyde o guia por excelência da época. Subjacente a este gótico tardio encontra-se uma profunda e reveladora verdade ( Fowles 1969, 169).

Um mundo masculino tornado inseguro por tal dilaceramento cultural não poderia deixar de ser perturbado e ameaçado pelo aparecimento da "nova mulher", em tudo oposta pelos seus excessos à tradicional e confortante moderação característica da mulher passiva, angelical e asexuada. Um jornal da época publica a seguinte descrição da "nova mulher", apresentando-a em uma perspectiva claramente pouco louvável:

Tarefas domésticas ela rejeita porque acredita serem humilhantes para uma mulher instruída, despreza o respeito próprio ao marido como um sinal de submissão a um inferior, não gosta de crianças porque atrapalham e incomodam, vê o amor como uma ilusão própria de lunáticos e idotas. O que ela quer é a liberdade de fazer o que bem entende.... Embora não faça nada que seja imoral, insiste em mostrar que faria se quisesse.... Cuida bem de nervos e músculos, joga cricket e golfe, pratica remo, ciclismo e caça.... Veria como ridícula a idéia de que apenas um homem, seu marido, poderia apreciar sua graça e beleza... Ainda solteira, já conhece em detalhes todos of horríveis vícios das grandes cidades... [e sabe mais] sobre outros lugares do que sobre o próprio lar e coisas domésticas, mais sobre qualquer outra virtude que sobre o respeito pela autoridade, e sobre aquela atenção ao dever, moderação nos costumes, e aquela doce, paciente e e tranqüila abnegação que costumava ser a marca característica do sexo. Seus dois únicos objetivos são ter tanta agitação quanto possível, quaisquer que sejam os meios, e assemelhar-se tanto quanto possível a um homem. (In Wolf 1975, 90-91).

É óbvio que uma tal mulher liberada, particularmente em sua sexualidade, hesitaria menos do que a mulher tradicional à potente sexualidade de Drácula, gerando assim maior insegurança no mundo masculino. Em Dracula, Lucy Westenra está mais próxima da "nova mulher" do que Mina, e representa portanto uma ameaça a ser contida. Mina Murray assemelha-se em parte à nova mulher mas não chega a apresentar uma ameaça ao mundo masculino porque, ao lado de uma inteligência prática que é capaz prestar valioso auxílio ao grupo dos caçadores do vampiro ao descobrir, por meio de um preciso raciocínio dedutivo, a rota de fuga de Drácula, preserva também valores de uma domesticidade idealizada e assexuada. Mina, na caracterização precisa de Van Helsing, tem o cérebro de um homem.... e o coração de uma mulher (Stoker 1975, 209). É a partir dessa situação basicamente doméstica e domesticada que Mina expressa claramente reservas a respeito de um excesso de liberdade no relacionamento entre os sexos. Retirando-se para o quarto para descansar após uma caminhada em companhia de Lucy, esta logo adormece e é observada por Mina. Seus comentários sobre o que é próprio ou impróprio no comportamento da mulher cortejada são reveladores. Admirando a graça de Lucy em seu sono, Mina imagina que, se Lucy tinha sido capaz de despertar a paixão de Holmwood quando este a viu no lugar apropriado, ou seja, no espaço público e bem comportado da sala de visitas, despertaria paixões ainda maiores se fosse vista no espaço proibido do quarto. E continua:

algum dia, as novas mulheres escritoras lançarão uma proposta para que seja permido a homens e mulheres verem-se uns aos outros no sono mesmo antes de se tornarem comprometidos por um pedido oficial e pela aceitação. Mas é bem possível que, no futuro, a nova mulher não se conforme em aceitar: ela mesmo se encarregará de fazer o pedido (Stoker 1975, 91; os grifos são meus).

É esse conservadorismo básico de valores em Mina que permite ao mundo masculino resgatá-la da influência perniciosa de Drácula e idealizá-la como mulher, mãe e esposa exemplares. Mina, como diz Van Helsing, é uma das excelentes mulheres que ainda restam e que conseguem tornar possível a felicidade na vida -- excelentes mulheres cujas vidas e cujos valores podem ainda servir de exemplo para as gerações do futuro. (Stoker 1975, 168). Lucy, por outro lado, uma vez contaminada por Drácula, adquire aquela sexualidade exarcebada que o imaginário vitoriano percebia como incompatível com a domesticidade feminina que ia, aos poucos, sendo colocado em questão pela "nova mulher".

Mina e Lucy podem bem representar, portanto, os dois tipos femininos com os quais homem da época vitoriana tinha que conviver. Vale dizer, representam modelos de mulher a serem aceitos ou rejeitados em termos da maior ou menor ameaça a uma sexualidade culturalmente percebida como prerrogativa do masculino. Como observa Carol Senf, é bem possível ... que Stoker esteja conscientemente colocando em contraste [no romance] a nova mulher liberada sexualmente [Lucy após ser atacada por Drácula] com a mulher mais claramente tradicional [Mina] (Senf: 1982, 46). Se este for o caso, a ameaça representada pela mulher liberada acaba por justificar uma violência destruidora superior àquela reservada ao próprio Drácula. Enquanto no caso do vampiro bastam dois golpes de faca para a destruição do monstro, a destruição de Lucy ocorre com surpreendente violência: seu corpo é penetrado por uma estaca de aproximadamente um metro e seu noivo, que realiza a operação, é comparado em sua força agressiva à figura de Thor... (Stoker 1975, 194).

2. SOBRE VIAGENS, GEOGRAFIA E BIBLIOTECAS

Apesar da inegável e indispensável pertinência das leituras históricas e psicanalíticas, são ambas frequentemente marcadas por uma certa ênfase na função do monstruoso enquanto discurso imaginário cujo objetivo é afirmar o normativo e o aceitável, e isso principalmente em termos sexuais, pela demarcação de seus limites. O que tende a ser reprimido em tais leituras é, em primeiro lutar, tudo aquilo que, no texto, não cabe na categoria da sexualidade e, em segundo lugar, a presença ambivalente do monstro enquanto criatura de fronteira que tanto afirma quanto questiona a norma. A ênfase no sexual reprime, por assim dizer, a questão da geografia e das viagens, representadas no romance tanto no enredo como nas detalhadas descrições da biblioteca do conde. Quando visita o castelo de Drácula, por exemplo, Jonathan Harker apresenta uma detalhada descrição geográfica e cultural da Transilvânia. Harker viaja não apenas como o representante legal de um estabelecimento londrino interessado em vender propriedades à Drácula, mas também como turista e professor de inglês encarregado de dar aulas particulares ao conde. Como turista curioso e viajante experiente que tenta preparar o terreno para o encontro comercial com Drácula, Jonathan informa-se sobre a terra a ser visitada antes mesmo de iniciar a viagem: visita o Museu Britânico e lá coleta livros e mapas... relativos à Transilvânia. Com a ajuda prévia de tais livros e mapas, familiariza-se aos poucos com uma nova geografia necessariamente constituída como primitiva, selvagem e exótica a partir da fronteira civilizada do império britânico

Descobri, diz Jonathan, que o distrito por ele [Drácula] nomeado encontra-se no extremo leste do país, nas fronteiras de três estados, a Transilvânia, a Moldavia, e a Bucovina, bem no meio das montanhas carpacianas; uma das mais primitivas e menos conhecidas partes da Europa. Trata-se de lugar habitado por descendentes de Saxões, Dácios e Magiares, estes últimos afirmando pertender à mesma raça de Átila, o bárbaro rei dos Hunos. (Stoker 1975, 3)

O mapa assim constituído em seus aspectos mais genéricos é enriquecido com detalhes observados durante a viagem até o castelo do vampiro: a comida típica da qual o visitante pretende obter a receita; as mulheres, atraentes quando vistas de longe mas não tão atraentes quando olhadas de perto; os estranhos e pitorescos eslovacos, mais primitivos do que todos os outros; os trens, tanto menos pontuais quanto mais se avança para o leste (Stoker 1975, 4-5) A experiência do viajante metropolitano, preparada de antemão e confirmada durante a viagem, configura-se assim em termos da aventura de ir além dos limites do civilizado para negociar com o que se poderia caracterizar como a elite dominante de um país subdesenvolvido, exótico e, pelo menos em princípio, comercialmente interessante.

A experiência de Jonathan como viajante metropolitano representa um curioso contraste com a experiência de Drácula em sua viagem, também previamente planejada, do mundo primitivo para o civilizado. Embora localizado nas margens da civilização, o castelo do vampiro possui uma biblioteca que, apesar de insignificante quando comparada ao Museu Britânico, possui significativa variedade de livros metropolitanos. O conde Drácula não deixa, nesse contexto, de revelar uma certa semelhança com o intelectual do Terceiro Mundo, sempre bem informado sobre a metrópole, apesar de nem sempre tão bem informado sobre os seu próprio contexto cultural.

Encontrei na biblioteca, diz Jonathan, um grande número de livros ingleses, estantes inteiras repletas deles, e volumes encadernados de revistas e periódicos. Em uma mesa no centro estavam espalhados revisas e periódicos ingleses, muito embora nenhum deles de data muito recente. Os livros eram de tipos variados -- história, geografia, política, economia política, botânica, geologia, direito -- todos referentes à Inglaterra e à vida, costumes e hábitos ingleses. Havia até mesmo livros de referência como o Diretório Londrino, o Livro Vermelho e o Livro Azul [volumes incluindo listas de servidores do estado e informações relativas ao parlamento, respectivamente], o Almanaque "Whitaker", a Listagem do Exército e da Marinha e -- o que me agradou sobremaneira -- a Listagem do Direito Civil (Stoker 1975, 23)

Embora nem sempre atualizada, a biblioteca do vampiro não deixa de surpreender. É que Drácula necessita alimentar-se também do sangue cultural inglês como preparação para a conquista do lugar metropolitano intensamente desejado.

"Lendo estes livros", diz o vampiro a Jonathan, aprendi sobre a vossa grande nação; e aprender sobre ela significa a ela apegar-se. O meu desejo é caminhar no meio da multidão das avenidas londrinas, estar no meio do tumulto e da correria dos homens, participar da sua vida, suas mudanças, sua morte, e de tudo o que a faz com que ela [a vida londrina] seja o que é (Stoker 1975, 23).

Drácula age aqui como o ser de fronteira, inseguro em sua identidade porque excluído da vida metropolitana e dela querendo fazer parte porque, como qualquer colonizado, percebe-a como superior e mais prestigiosa. Na verdade, provavelmente como resultado de sua origem nobre, Dracula quer mais do que simplesmente fazer parte da vida metropolitana. Porque pertence a uma elite, muito embora se trate de uma elite ligada a uma história de barbárie, o vampiro quer não apenas viver na metrópole, mas também nela ocupar o lugar de mando ao qual julga ter direito em sua condição de membro da classe nobre de seu país. Aqui [na Transilvânia], diz o conde, sou um nobre; um boyar ["membro da nobreza"]; as pessoas do povo me conhecem, e sou o senhor (Stoker 1975, 23) E é com o objetivo de obter um lugar dominante na metrópole que Drácula precisa submeter-se a rigoroso aprendizado de língua e cultura. Não basta, como explica o conde a Jonathan, aprender a linguagem apenas com a ajuda de livros porque com eles se conseguiria apenas a gramática e o vocabulário, desprovidos da pronúncia correta e natural. Vale dizer, o vampiro quer eliminar o sotaque que o tornaria vulnerável como estrangeiro e o marcaria como inferior.

Qualquer um, diz o conde, reconheceria em mim um estranho, o que não é de forma nenhuma satisfatório.... Não aceitarei nada memos do que ser como todos os outros, para que ninguém tenha sua atenção voltada para mim, e interrompa suas palavras ao me ouvir para dizer `Ah, um estrangeiro!


Jonathan deve, portanto, prestar seus serviços não apenas como corretor de imóveis, mas também como professor de inglês: ficarás aqui como meu hóspede por algum tempo e, em nossas conversas, espero aprender a falar sem sotaque; o que quero é que me informes cada vez que eu cometer um erro de pronúncia, por menor que seja. (Stoker 1975, 23-24)

Embora o texto nada explique sobre o resultado das aulas particulares, o mais provável é que elas tenham tido sucesso, já que, na metrópole londrina, o vampiro atrai atenção não pelo uso da linguagem, mas por outras peculiaridades alimentares e comportamentais, ou ainda pela aparência inusitada. Seja como for, a ênfase na questão de fronteiras internacionais e culturais no início do romance aponta para as limitações de uma leitura psicanalítica em que o vampiro é percebido como uma espécie de outro sexual apenas. As leituras (menos freqüentes) de cunho marxista, por outro lado, tendem a corrigir tais limitações mas acabam por incorrer no equívoco de perceber no texto mais ideologia marxista do que ele pode suportar. Burton Hatlen, por exemplo, reconhece que nenhum leitor moderno pode ignorar as implicações sexuais presentes em Dracula, mas acrescenta logo que o texto ultrapassa os limites da sexualidade. Para Hatlen, Dracula representa formas múltiplas de alteridade, entre elas a alteridade sexual enquanto aquele desejo inconsciente, perverso e inaceitável para qualquer estrutura social e, em particular, para a sociedade vitoriana inglesa. Mas Drácula é ainda um outro cultural, ou seja, um descendente de uma época histórica dominada pela superstição, quando se acreditava que a hóstia sagrada do catolicismo era realmente o corpo de Cristo. E é também e principalmente o outro social, ou seja, a representação de todas as forças sociais que pairavam ameaçadoras do outro lado das fronteiras da experiência vitoriana e burguesa. O vampiro é, portanto, simultaneamente o reprimido e o oprimido: o reprimido psíquico e o oprimido social (Hatlen 1980, 84, 82). O reconhecimento do vampiro enquanto o outro social oprimido, contudo, leva Hatlen à sugestão problemática e pouco convincente de que Drácula, claramente apresentado no texto como membro de uma certa aristocracia, pode ser visto como emblemático de uma força social proletária, ameaçadora, repugnante e devassa que agride a respeitabilidade da elite privilegiada vitoriana. (Hatlen 1980, 92).

Apesar das dificuldades que se apresentam na tentativa de especificar excessivamente o outro social no vampiro, a percepção marxista de uma alteridade mais genérica que a sexual em Drácula é inegavelmente certeira. O monstro, como se viu, representa também, apesar de seu poder econômico, um imigrante indesejável e perigoso vindo de uma nação selvagem e primitiva que tenta instruir-se na língua e cultura da nação civilizada para nela entrar como senhor e com direito de explorar os seus recursos disponíveis, particularmente os femininos. A aquisição dos códigos lingüísticos e culturais, contudo, não são suficientes para a entrada no mundo civilizado, e o vampiro deve aceitar a condição de um ser de fronteira (e de identidade problemática) condenado a duas situações pouco satisfatórias: relacionar-se com a metrópole vicariamente apenas, lendo os livros de sua biblioteca particular, ou então ser destruído. Em Dracula, a destruição é levada a cabo por cinco representantes do mundo civilizado que, auxiliados por Mina, constituem o que um crítico chamou de "O Grupo dos Iluminados" ("The Crew of Light") ( Craft 1984, 107-133). O grupo, que constitui uma verdadeira aliança internacional (três ingleses, um americano, e um alemão), compartilha certos ideais comuns apesar da diversidade de interesses e nacionalidades. Lord Arthur Godalming é um aristocrata inglês que não vê dificuldades em aliar-se a profissionais de uma outra classe, a da alta burguesia inglesa, representada pelo advogado, Jonathan Harker, e pelo médico especialista em doenças mentais, Dr. Seward. São membros representantes do que se poderia chamar a elite dirigente da Inglaterra vitoriana, dedicados à preservação tanto dos valores civilizados da ciência, da tecnologia e da cultura, como da mulher angelical representada por Mina Harker e pela Lucy Westenra anterior ao ataque do vampiro. Os outros membros do grupo, apesar das diferentes nacionalidades, partilham com os ingleses a mesma crença nos valores da civilização e da tecnologia, contribuindo para sua manutenção e expansão através de seus conhecimentos técnicos: Quincey Morris, americano do Texas, destaca-se no grupo pela apreciação de armas como a moderna "winchester", e o alemão Van Helsing, além de médico, é um profundo conhecedor de vampiros em sua história, hábitos e vulnerabilidade.

A caça ao vampiro pelo Grupo dos Iluminados apresenta-se assim como uma cruzada em defesa da civilização e do bem contra as forças da barbárie e do mal. É preciso, a todo custo, não deixar o migrante perverso cruzar a fronteira. O objetivo explícito da caça e destruição do vampiro é resgatar Mina Harker da influência de Drácula, já que tal influência poderia permanecer ativa mesmo à distância e condenaria Mina à mesma violência de que Lucy fora anteriormente vítima. Mas como Lucy Westenra ("a luz do oeste") e Mina Harker representam, em sua suavidade e luz (Hatlen 1980, 83), os valores ideais de uma sociedade civilizada, o que está implícito no romance é a necessidade da destruição do Vampiro porque este ousou cruzar a fronteira que separa a Transilvânia da metrópole londrina na tentativa de constituir, nesta última, uma nova identidade com direitos de senhor, particularmente sobre as jovens mulheres. A temática da geografia e da fronteira, como se sugeriu antes, sobrepõe-se à da sexualidade. Questionado por Mina sobre a necessidade de prosseguir na perseguição do Vampiro após sua fuga de Londres, Van Helsing lembra que o conde, apesar de seu dotado apenas com o cérebro infantil (child brain) de um criminoso, é poderoso e persistente e pode tentar novamente cruzar fronteiras. A persistência do conde, insiste didaticamente o médico vampirólogo, tinha já se tornado evidente no cuidadoso planejamento para a invasão de Londres.

Com o seu cérebro infantil, diz Van Helsing, ...acalentou desde longa data a idéia de estabelecer-se em uma grande cidade. O que faz? Encontra o lugar do mundo que lhe é mais promissor. Prepara-se então deliberadamente para sua tarefa.... Estuda novos idiomas. Aprende um novo comportamento social; ... o sistema político, legal, financeiro, científico, os costumes da nova terra e de seu povo.

E essa persistência e sistematicidade podem ameaçar novamente não apenas o império inglês, mas também outras partes civilizadas do mundo, razão por que torna-se necessário o esforço conjunto do Grupo dos Iluminados com o objetivo de assegurar a liberdade no mundo (Stoker 1975, 282). Entenda-se aqui por "mundo" o mundo civilizado, do qual não faz parte a Transilvânia.

3. A ARBITRARIEDADE DAS FRONTEIRAS E O FALSO DUALISMO DO DENTRO E DO FORA

O sucesso da caça ao conde Drácula acaba por despojar este último até mesmo da problemática identidade que possuía antes da decisão de cruzar a fronteira. Essa identidade problemática pode ser pensada em termos daquela vampiresca alteridade que jamais consegue perceber seu reflexo no espelho e que é devidamente registrada por Jonathan Harker em sua visita ao castelo de Drácula. Barbeando-se em frente a um espelho após a primeira noite no castelo, Jonathan surpreende-se ao sentir um toque no ombro, logo seguido pela saudação matinal do conde. O que é estranho para o jovem advogado é que, muito embora o espelho torne possível a visão refletida de todo o aposento, o reflexo do conde não aparece. Vale dizer, olhando para o espelho, Jonathan vê apenas o reflexo de si mesmo e do quarto, mas não o do monstro que também está presente. A impossibilidade de Drácula ter sua imagem refletida no espelho faz parte, evidentemente, do discurso folclórico que estabelece essa peculiaridade como característica do vampiro: sendo apenas um cadáver ambulante (freqüentemente designado no romance como un-dead, ou seja, o não-vivo), o vampiro não possui a força viva da alma que, na mitologia tradicional sobre o espelho, é justamente o que aparece como imagem refletida. Mas em um romance em que a figura do vampiro é constantemente marcada por uma situação de ser de fronteira e de identidade problemática, o episódio do espelho comporta pelo menos dois outros significados. Em primeiro lugar, ao negar-se a apresentar a imagem do que existe, o espelho revela em seu silêncio a identidade paradoxal de alguém que ao mesmo tempo é, porque age no mundo, e não é, porque jamais se percebe existente na imagem especular confirmadora da presença. Em segundo lugar, essa identidade do não-vivo e do não-ser não aparece no espelho porque sofre um curioso deslocamento em que a imagem daquele que olha e tem imagem (Jonathan) ocupa o lugar da imagem do outro ao mesmo tempo presente (fora do espelho) e ausente (no espelho). Ao olhar para onde o monstro deveria estar, Jonathan encontra-se a si mesmo, o que sugere que o humano e humanitário advogado londrino ocupa o lugar do monstruoso e, em certa medida, identifica-se com ele. O humano e o monstruoso tornam-se aqui inseparáveis e apontam para a ambivalência do projeto civilizatório do Grupo dos Iluminados. O que o projeto precisa assinalar com a destruição do monstro é a marcação de fronteiras capaz de assegurar a diferença absoluta entre o normal e o anormal, o selvagem e o civilizado, o humano e o monstruoso, o sexo aceitável e o inaceitável. No entanto, como a crítica do romance tem mostrado insistentemente, essa separação radical é ilusória. A monstruosidade do outro está sempre mais próxima do que se pensa porque nunca existe separadamente do humano. Ou, melhor dizendo, a caça ao monstro além das fronteiras da civilização é sempre, em certa medida, inútil, porque o monstruoso habita desde sempre o lado de cá da fronteira.

Jonathan Harker, por exemplo, no citadíssimo episódio do encontro com as mulheres-vampiro no castelo de Drácula, expressa simultaneamente desejo e rejeição quando em confronto com a sexualidade monstruosa que quase chega a experimentar. Diante da proximidade dessas mulheres de lábios cheios de volúpia, Jonathan sente ao mesmo tempo um desejo e um temor profundo... [e] uma vontade de ser beijado por aqueles lábios vermelhos. E para que não reste dúvida de que se trata de um desejo sexual proibido, o texto acrescenta logo a sugestão das complicações que ocorreriam se Mina, a futura esposa, viesse a saber do ocorrido: não é uma boa idéia tomar nota [no diário] do fato [o quase contato sexual com a mulher vampiro], já que o diário poderia algum dia ser lido por Mina; mas [a realidade do desejo] é a pura verdade (Stoker 1975, 39). E a peculiaridade que tem os vampiros de não entrar em lugares para os quais não são convidados sugere que as mulheres que dele se tornam vítimas não são apenas objetos passivos de um desejo monstruoso. São antes cúmplices que procuram, particularmente na era vitoriana, e ainda que inconscientemente, a satisfação da sexualidade reprimida e desejada. Como sugere George Stade, é bem possível que, para a mulher vitoriana, o beijo de Drácula seja um beliscão bem no lugar onde ela sente seus pruridos ( Stade 1981, vii). Mas é possivelmente no célebre episódio da transfusão de sangue para salvar Lucy que a inseparabilidade entre o monstruoso e o humano aparece de forma mais reveladora. Enfraquecida pela perda de sangue após os ataques de Drácula, Lucy recebe transfusões de sangue não apenas de seu noivo, Lord Godalming, mas também de Quincey Morris, Dr. Seward, e do próprio Van Helsing. Lucy transforma-se, em outras palavras, em um verdadeiro vaso condutor em que o sangue bombeado de um lado esvai-se de outro. O episódio é justamente celebrado pela crítica psicanalítica, já que o sangue pode bem ser uma metáfora para o sêmen. Mas trata-se também de um episódio em que o vampiro se mostra literalmente ligado por laços de sangue aos membros do Grupo dos Iluminados. Em todos os casos, as ações transgressoras do vampiro são justamente aquelas que o humano deseja praticar ou experimentar e que tenta, desesperadamente e sem sucesso, reprimir e destruir. O vampiro pratica aquelas ações (sociais, sexuais ou culturais) que o civilizado, homem e mulher, desejam praticar mas não podem. Dracula, como observa certeiramente Burton Hatlen, trata fundamentalmente do nosso desejo (`nosso' significando aqui pertencente à classe média branca) de sujeição (`sujeição' tendo aqui o sentido masoquista explícito característico da pornografia) ao... marginal `negro' e `mal-cheiroso'. (Hatlen 1980, 95). E é porque o vampiro pratica abertamente o desejado e o proibido e a transgressão de fronteiras, funcionando assim ao mesmo tempo como crítica e legitimação da norma e do limite entre o dentro e o fora, que seu destino é ser permanentemente condenado à problemática condição identitária daquele que, habitando sempre os limites do humano, ao mesmo tempo existe e não existe.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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STADE, George. "Introduction". In STOKER, Bram. Dracula... New York: Bantam, 1981.


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